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Conto: 3:15
Acordou no meio da madrugada. Sentia uma grande vontade de fazer xixi. Fazia frio naquela noite, e foi difícil se levantar da cama quentinha para o ar do quarto gelado. Assim que pousou os pés nos chinelos frios amaldiçoou a hora em que inventou de beber água antes de se deitar.A escuridão do quarto só era quebrada pela fraca luz vermelha do visor do rádio-relógio, em números garrafais: “3:15”. Pensou em qualquer coisa desagradável, mas logo fez questão de esquecer. A meta era fazer um xixizinho rápido, e logo voltar para a cama.
Abriu a porta, que rangeu baixinho. Fora do quarto, a cozinha também estava fracamente iluminada, mas pela luz da lua cheia que entrava pálida pela janela. Ao longe, ouvia sons esporádicos de carros notívagos na avenida, além do zumbido elétrico da geladeira e do tique-taque monótono do relógio na parede, também mostrando os mesmos três e quinze, quase imperceptíveis na penumbra.
Seus olhos ardiam de sono e, enquanto caminhava na direção do banheiro, ouviu um outro som, murmurando, vindo da parede. Um som leve, uma voz humana, mas não se distinguia o que era exatamente.
Parou no meio do caminho para o banheiro do pequeno apartamento. Surgiu, de imediato, a curiosidade: “Que seria isto?”, perguntou a si própria. Mudou de direção, no rumo da parede. Encostou o ouvido no gelado revestimento de cerâmica. Veio, em sua mente, como um longínquo devaneio, a imagem de sua mãe lhe dizendo que era muito feio bisbilhotar, moralismo este logo sufocado pela autojustificação de certificar que nada de mau ocorria no apartamento da vizinha.
Lamúrias indistintas vinham de dentro da parede. Um choro de viúva, típico de velório, corria pelos frágeis tijolos até seu ouvido esquerdo. Sabia pouco sobre a velha do 54, tampouco seu nome. Só sabia que morava sozinha, e demonstrava hábitos ultrapassados sempre seguidos de uma simpatia senil que lhe incomodava. Sempre que podia fugia dela, mas não podia evitar os encontros nos corredores e locais públicos do condomínio. Não sabia bem o porquê, mas evitava a velha. Devia ser choque geracional, explicava rapidamente para si própria.
Tomou um susto. Enquanto refletia sobre a velhinha e o que poderia ser aquilo, o choro que estava baixo e distante subitamente ficou mais alto, como se a velha saltasse para perto da parede exatamente do outro lado em que ela se encontrava bisbilhotando. Num soluço de medo, afastou-se da parede.
— “Mas... Que estranho...” – o choro pareceu ganhar ressonância ao seu redor. Vinha de todo lugar, ecoava nas paredes do apartamento, quase que num efeito de sala de cinema. A sua consciência, personalizada pela imagem da mãe, surgiu instantaneamente em sua mente, culpando-a das consequências de sua curiosidade. “Fui pega? Não... Não pode ser possível, deve ser coisa da minha cabeça”. Tapou os ouvidos. Silêncio. Não estava em sua cabeça. Soltou as mãos devagar da cabeça, e o chorinho parecia mais desesperado agora, como se a viúva fosse se lembrando da dor de sua perda, ao lado do caixão do falecido. Vinha de todos os lados. E era real.
A geladeira desligou num estalo. Olhou em sua direção e quase caiu de costas no que viu: uma sombria presença, esguia e de forma humana estava imóvel, voltada para si, do lado da geladeira.
Soltou um gritinho abafado e sentiu fraquejar um pouco, mas o instinto de sobrevivência lhe impulsionou para a porta do apartamento. Grunhia desesperada não querendo olhar para trás, de onde vinha um som parecido ao de rastejar de folhas, junto com o choro – agora convulsionado. As chaves escorregavam em seus dedos suados, os dentes pressionados, uma pontada na barriga. Não podia ser, aquilo não podia ser real... “Meu Deus, o que eu fiz?”. O frio aumentou em sua nuca, uma presença pesada, mortal e agressiva parecia avizinhar-se sorrateira.
Abriu a porta e jogou-se para fora. A luz automática do corredor acendeu, e ela trancou a porta num estrondo, desesperada. Correu de costas pelo corredor, perdendo um dos chinelos no carpete. Bateu na parede do lado da escada e deixou-se escorregar até sentar no chão macio... A sensação de ter escapado do perigo abrandou levemente o pânico, permitindo-lhe tremer e começar a lacrimejar. Não, na sua casa não, isso não era possível... Isso não existia, era coisa de louco... “Estou ficando louca? Oh, não...”.
Um estalido. Um rangido. Respirou fundo quando viu a velha sair do 54, rosto lívido, lhe observando. Um sorriso enrugado apareceu no rosto da velhinha:
— O que aconteceu querida? Precisa de ajuda?
— N... N... Não... Está tudo bem, eu só tomei um susto em casa, mas não é nada de mais.
— Não faz bem uma moça tão linda com uma cara assim, apavorada. Entre em casa, tenho um chazinho de camomila que vai te acalmar.
“Não... Não seja idiota, garota, é uma armadilha. Ela sabe de tudo, ela vai te ferrar. Ela fez isso. Ela é uma BRUXA!” – pensou – “Não... Não seja idiota mesmo, isso não existe... Você está com sono e viu coisas, ouviu coisas... Nada mais” – pensou de novo.
— Mocinha? Quer ajuda para se levantar?
Acalmou-se um pouco mais e começou a se sentir patética. Isso não existe. Não, isso tem explicação... Já precisou ir a psicólogo antes, já tomou até remédio... Deve ser coisa da mente. Levantou-se e aceitou o convite da velha.
O 54, assim que adentrado, cheirava a coisas velhas. A luz forte da cozinha e a aparência de normalidade da residência lhe deixou ainda mais tranquilizada e convencida de que estava delirando. Uma tola. Só isso que podia ser. Que papelão... Assustar uma velha senhora àquela hora da madrugada...
— Sente-se, querida. Já volto com o chá.
Sentou-se numa poltrona verde amaciada pelo uso e pelo tempo. Afundou no assento. Juntou as mãos pálidas e geladas por entre as pernas num gesto pueril de aquecimento, e se lembrou de que queria muito fazer xixi.
Foi quando um cheiro estranho correu o ar... Não era camomila. Era um cheiro repugnante, podre. Carne podre. O medo retornou, e o silêncio pesou no ambiente. De repente, teve a sensação de ter sido abandonada na companhia de um predador. Um grunhido... Vindo de trás. Virou-se muito rápido para ver o que era, mas a consciência lhe esvaiu por um segundo como num ligeiro apagão. Recobrando-a, estava sentada numa das cadeiras geladas na cozinha de seu apartamento. O tique-taque do relógio de parede vinha acompanhado do mesmo choro. Do outro lado da cozinha, no corredor que leva aos quartos, uma velha chorava de costas para si. Teve a mesma sensação que um condenado à morte deve ter no último momento e resignou-se de sua situação, como presa paralisada, relaxando numa urinada quente. Nada mais fazia diferença e sequer reagiu quando se sentiu engolfada por uma presença traiçoeira, que atacava pelas costas, abraçando-a geladamente... Pouco antes de ser tomada pela escuridão, a velha começava a voltar-se para si, com vibrantes olhos vermelhos.
Era a Velha do 54.
Autor(a): Eudes de Paula Colodino
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