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Conto: O olho esquerdo
No começo ele pensou ser algum tipo de alergia, ou um cílio que insistia em permanecer instalado ali. Ele respondeu com um sorriso amarelado a comentários do tipo: Nossa Rodrigo, puxando um de manhã antes do trabalho! Notava que quando ele estava conversando com alguém sobre qualquer coisa, a pessoa tentava desviar o olhar do seu olho esquerdo, mas o olho esquerdo permanecia firme e forte no confronto com aqueles outros olhos saudáveis.
Conforme os dias foram passando, Rodrigo reparou que quando ele acordava, havia uma mancha amarelada em seu travesseiro do lado esquerdo.
Rodrigo sempre teve aquela fobia que algumas pessoas têm quando o assunto é uma ida ao médico. O medo de estar com uma doença em um estado terminal, ou descobrir que terá que amputar um membro, o assombrava de certa maneira como se ele realmente estivesse muito doente.
Levantou-se da cama e foi até o banheiro lavar o olho que não abria involuntariamente. Os cílios estavam grudados um no outro por aquele pus amarelado feito cola, e aos poucos ele conseguiu abri-lo. Ele esfregava um pouco de água com os dedos e removia aquela gosma que esticava feito chiclete, e ele sentiu uma pontada gelada na espinha.
Quando terminou de remover todo o pus e conseguiu finalmente piscar os olhos, ele olhou no espelho e viu seu rosto magro de 37 anos. Sua vida se resumia a espinhas indesejadas, risadas maliciosas pelos cantos, um trabalho do qual ele não gostava, e a ausência paterna que lhe proporcionou muitas noites sem dormir. Ele sempre odiou Deus por tê-lo posto no mundo do jeito que ele era. Não entendia porque Deus fizera isso com ele.
Piscou o olho esquerdo. Aparentemente estava tudo bem, e o olho não estava vermelho nem nada. A visão esfumaçada havia desaparecido, e ele via com uma nitidez a qual ele estava estranhando. Vestiu suas calças, sapato preto, terno e gravata, e lá foi ele para mais um dia na vida de um funcionário público.
Desceu as escadas sujas do metrô e entrou em um vagão abarrotado de gente. Trabalhadores infelizes atrás de dinheiro maldito. Ele não era diferente.
Sentou-se ao lado de uma senhora muito pequena magra e com os cabelos longos trançados, que lhe lembrou da velhice da Rapunzel.
Olhou novamente ao redor e notou um traseiro muito bem desenhado parado na sua frente. Não havia nada de incomum naquele vagão, a não ser algo que Rodrigo notou pela sua visão periférica. Era algo peludo, como um urso. Não, parecia bem menor. Estava sentado no colo da velha Rapunzel e foi quando Rodrigo virou-se para olhar.
Sentado feito uma criança no colo da velha, estava uma criatura pequena, do tamanho de uma criança de uns cinco anos de idade, com as pernas peludas feito as de um bode, balançando de um lado para outro. Seu corpo todo era peludo, possuía o focinho de um porco, e orelhas de morcego. Quando a tal criatura percebeu o espanto de Rodrigo, ela olhou-o nos olhos e sorriu um sorriso maligno cheio de dentes podres.
Rodrigo levantou-se atordoado e correu pelo vagão esbarrando em todos, quando finalmente a porta se abriu e ele saiu desesperado de lá. Sua respiração estava ofegante e ele subiu as escadas até a rua.
Primeiro ele achou que estivesse no meio de um pesadelo, mas concluiu que não, e foi quando um vento forte soprou na Avenida Paulista e um cisco entrou no seu olho direito. O olho ardeu e Rodrigo o esfregava com toda força até que ele o manteve fechado enquanto o esquerdo estava aberto, e foi quando ele entendeu.
Todas aquelas pessoas passando por ele na calçada, os motoristas dos ônibus e carros, todos possuíam demônios que os seguiam. Rodrigo podia vê-los. Eram de todas as formas e tamanhos. Caminhavam junto às pessoas, como se estivessem algemados a elas. Possuíam formas animalescas. Rodrigo rapidamente abriu o olho direito e fechou o esquerdo. Os demônios haviam desaparecido. Caminhou pela rua apressadamente e entrou em uma livraria onde comprou uma fita adesiva. Caminhou até o prédio onde trabalhava e foi direto até o banheiro mais próximo. Esperou todos saírem e trancou a porta para que ninguém mais entrasse. Mais uma vez olhou-se no espelho. Não deixou que aquele rosto feio o intimidasse e foi logo colocando a fita adesiva sobre o olho esquerdo, se perguntassem ele diria que estava com muita dor no olho, não importava. Rodrigo agora enfrentava um dilema muito maior: não queria conhecer o seu demônio. Juntou forças para enfrentar mais um dia de trabalho e tentar se distrair, e saiu do banheiro.
Quase todo mundo que passava por ele perguntava o que havia acontecido com seu olho, e ele dizia que havia machucado. Sentou-se em sua cadeira, olhou os papéis em sua mesa, e quis morrer.
As oito horas de trabalho passaram mais rápido do que o normal e ele não queria ir para casa . Ir para casa implicaria em ficar sozinho, e ele não queria tentar-se a remover a fita adesiva de seu olho. Lá se foi ele para casa. Resolveu caminhar até a próxima estação de metrô.
A vida é fria quando não se tem alguém ao lado. Rodrigo não teve ninguém a não ser sua mãe que passou boa parte da vida doente e reclamando do seu pé que a cada ano ficava mais inchado. Sua morte fora um alívio para Rodrigo, mas no fundo ele sentia falta dela.
Abriu a porta de casa e deparou-se com o silêncio. Pensou em ligar para seu primo, mas desistiu. Sentia-se covarde, impotente. Não entendia por que aquilo estava acontecendo com ele. O que aquilo significava? Chorou sentado em seu sofá. Foi até o banheiro, enxugou as lágrimas e removeu a fita adesiva. Sua visão estava um pouco embaçada devido às longas horas que a fita pressionou seu olho, e então, voltando ao normal, viu-se encarando a si mesmo. Gritou:
– ONDE ESTÁ VOCÊ, SEU FILHO DA PUTA?
Olhou em volta e nada. Tudo estava em seu respectivo lugar. Somente ele e seu apartamento. Caminhou até seu quarto e sentou-se na cama. Ele estava louco, aquilo não havia acontecido, seu olho estava normal. Acalmou-se um pouco e começou a despir-se para pôr sua roupa de dormir. Enquanto desabotoava sua camisa, ele notou um movimento estranho embaixo de sua cama. Abaixou-se. Lá estava.
Deitada em posição fetal, jazia uma mulher gorda e muito branca. Estava nua. Seus olhos eram vermelhos e ela não possuía cabelos. Rodrigo sentiu o sangue coagular. Rodrigo podia ver os poros da pele da mulher que eram muitas vezes maiores do que os nossos. As veias dela também eram muito visíveis. Suas unhas eram amareladas e muito curtas como se ela as comesse constantemente. Ela não possuía lábios. Nem nariz, a não ser por dois furos. Rodrigo continuou olhando, passou o olhar pelas pernas gordas e cheias de estrias da mulher, até que chegou aos pés. O esquerdo era enorme. Parecia feito de borracha. Inchado e vermelho. Um nó parou na garganta de Rodrigo. Ele levantou-se correndo e se trancou no banheiro:
– SUA VAGABUNDA! NOJENTA!
Gritava e chorava desesperadamente enquanto amaldiçoava seu demônio, que era nada mais nada menos do que sua mãe. A mulher doente que tornara sua vida infeliz.
Rodrigo abriu todas as gavetas do armário do banheiro até que achou uma tesoura. Com as mãos tremendo, respirou fundo e com toda a força existente em seu corpo enfiou a tesoura pela parte de cima de seu olho. Ignorou a dor. Continuou cavoucando enquanto o sangue jorrava. Estava se divertindo, estava orgulhoso. Continuava fazendo pressão para que o olho saltasse, e finalmente, lá estava ele : o olho esquerdo , o olho amaldiçoado na pia do banheiro . Pegou uma toalha de mão e amarrou-a em torno do olho. O sangue espalhava-se. Pegou seu celular e ligou para o Pronto-socorro.
Cheiro hospitalar familiar. Rodrigo estava seguro. Abriu seu único olho restante e notou algumas flores deixadas em cima de uma mesa. Alcançou algumas e leu os cartões. Eram de amigos do trabalho, mas uma em especial chamou sua atenção por estar em um envelope tão vagabundo . Um envelope pequeno e muito sujo, como se o tivessem pegado da sarjeta. As seguintes palavras estavam escritas:
NÃO É PORQUE VOCÊ NÃO ME VÊ QUE NÃO ESTOU AQUI.
Rodrigo soltou um grito de angustia enquanto puxou com força o tubo de soro dos seus braços, arrebentando algumas veias enquanto embaixo de sua cama um pé crescia cada dia mais.
Autor(a): Ana Laura T. Cardoso
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